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Individuação e Adolescência: Análise do filme “A família Belier”

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Individuação e Adolescência: qual a conexão entre esses dois processos?

Individuação: Um processo para a vida toda

A individuação é um processo de diferenciação do ser humano no transcorrer de sua vida, no qual um indivíduo se torna ele mesmo, pleno e distinto da coletividade, mas, vale ressaltar, não uma pessoa isolada. A Individuação leva ao desenvolvimento da personalidade no seu sentido único, singular. Trata-se do desenvolvimento do Self (Si-mesmo, totalidade) através de um confronto da consciência com elementos do inconsciente que precisam ser elaborados e integrados.

Através da Individuação, ao nos desenvolver naquilo que somos únicos, nos deparamos com a totalidade ou o Self (Si-mesmo) pois, para se tornar íntegro, é necessário abranger a totalidade do ser. “O processo que conduz a ela [a experiência do Self] foi por mim denominado ‘processo de Individuação’”. “JUNG, C.G. 1987”.

Adolescência e a crise de transição: como superá-la?

A adolescência é um fenômeno psicossocial que se inicia com a puberdade que é caracterizada, por sua vez, pelas mudanças físicas e biológicas que surgem nessa fase da vida. Há na adolescência, uma crise onde o jovem questiona sua maneira de estar no mundo, muitas vezes vivendo o conflito de desejar mas, ao mesmo tempo, temer romper as barreiras do lar e da segurança oferecida pelos pais. Há um ímpeto para desafiar mas há também a necessidade de se sentir parte de um grupo ou comunidade. Geralmente nessa etapa da vida inicia-se a vida sexual, carregada de conflitos, paixões, ciúmes, mudança de parceiros que surgem fazendo parte da experiência da vida amorosa.

O Sistema familiar

O que á a abordagem sistêmica?

Na amplitude da ciência psicológica, entende-se por terapia ou abordagem sistêmica, um conceito utilizado para se referir aos diferentes segmentos sociais em que o sujeito encontra-se inserido, como por exemplo, o contexto familiar, escolar, profissional. Nessa perspectiva, esses segmentos se envolvem mutuamente e formam sistemas em relação.

A família é um desses sistemas e pode ser definida como um todo complexo, onde a interação e comunicação entre seus membros converge para um estado de equilíbrio.

Na verdade, toda família é um universo único e instigante. E sem fugir à regra, a família Belier nos surpreende quando, logo no início do filme apresenta o pai, a mãe e um dos filhos da família como surdos comunicando-se através da linguagem de sinais. E Paula, a outra filha, que ouve e fala, encarregada de traduzir ao mundo, o que eles não conseguem dizer. Paula também ajuda na administração da fazenda onde moram e convivem e, conforme a história se desenrola, fica claro o papel fundamental de Paula para a existência da família nestes moldes. A família compõe-se, assim, de um jogo de relações ou um sistema que dinamicamente se equilibra, cada um desempenhando suas funções e papéis.

Entretanto, por ser a família esse sistema de relações contínuas e interligadas, ocorrendo mudança num dos membros, haverá mudança nos outros também. Como visto na película, isto ocorre quando Paula decide tentar seguir sua vocação para o canto. O sistema familiar se desequilibra, a relação de Paula com os pais adoece e aspectos importantes do sistema familiar como autonomia, responsabilidade, insuficiência e ousadia sofrem rearranjos e ajustes até que um novo equilíbrio pudesse se reestabelecer.

A história da surdez: quando a psicologia entra em cena?

Fazendo um breve apanhado histórico da surdez, vamos observar que na Antiguidade e na Idade Média, a surdez estava associada a um discurso místico e religioso que conferia ao surdo um status de imbecilidade, de semi-animalesco e não-humano. Isto se estendeu até o Iluminismo quando os surdos passaram a ser tidos como humanos, mas doentes, com uma anomalia a ser erradicada. Por muito tempo a medicina visou à cura e erradicação da surdez, mas a falta de êxito neste objetivo levou a uma outra forma de intervenção, a reabilitação da fala, ainda visando correção da anormalidade. A psicologia, por sua vez, seguiu este mesmo caminho da medicina, enfocando a surdez como deficiência com consequências psicológicas negativas, chegando a conclusões equivocadas sobre prejuízos intelectuais, emocionais e sociais consequentes à mesma.

LIBRAS – A língua brasileira dos sinais

 Isto começou a mudar à medida em que a surdez foi sendo colocada num contexto socioantropológico de respeito à diferença, e não no âmbito da deficiência. A partir daí as intervenções psicológicas passam a levar em conta as singularidades dos indivíduos e suas peculiaridades linguísticas e culturais. Advém daí o importante papel da língua dos sinais, forma fundamental de expressão dos surdos. A língua dos sinais é entendida não só como um meio de comunicação, mas um conjunto de conhecimentos culturais, um símbolo de identidade social, da história, dos valores e costumes dos surdos.

E é através da língua dos sinais que a família Belier se comunica, saudável e positivamente como se mostra no filme, o que colabora em desfazer crenças ainda presentes em nossa sociedade, de que os surdos possuem prejuízos intelectuais, ou são infantis. Obviamente os surdos ainda sofrem discriminação e consequente isolamento social, este último amenizado, no filme, pelo fato de serem três surdos na composição familiar e também por Paula ser a interprete em suas interações com os não surdos. Vale esclarecer que a expressão surdo-mudo é equivocada porque advém de uma crença comum que os surdos são também mudos pelo fato de não ouvirem. A audição é importante no aprendizado da fala, mas os mudos não o fazem porque possuem prejuízo no aparelho fonador, o que não acontece com os surdos, que podem aprender a falar, embora seja difícil e necessite bastante investimento. Além disso, os surdos não tem a linguagem oral mas possuem a possibilidade da língua dos sinais que não deixa de ser uma forma de linguagem.

 A Análise do filme

Paula é uma adolescente de 16 anos. Percebemos Paula experimentando essas emoções durante o filme nos diálogos com a amiga íntima, na paquera com o rapaz que vem a ser seu par de canto e com a sua menarca. Tais aflições parecem estar acentuadas pela grande responsabilidade que a família lhe incumbe, ao torná-la uma ponte de comunicação com o mundo. Mais desconfortável se torna o conflito de Paula quando seu dom musical lhe cobra uma escolha que pode romper com os mútuos, estreitos e dependentes laços familiares.

No filme, a vocação ou dom de Paula para o canto é um chamado do Self, conteúdo até então desconhecido pelo ego, que pode promover o processo de individuação nesta fase da adolescência. Entretanto, é preciso que o ego queira e sinta-se motivado a empreender este processo, cuja tendência muitas vezes é no sentido contrário, por ser, quase sempre, um processo doloroso. Percebemos que Paula reluta frente à escolha de uma nova possibilidade de vida por medo de perder a segurança parental e, provavelmente também, por temer a opção pelo desconhecido. Interessante notar também que há trechos no filme que mostram, por sua vez, a resistência dos pais ao crescimento e independência da filha, visto que isto exigiria mudanças em suas próprias vidas. Há uma cena em que a mãe de Paula, emocionada, confessa o desejo de que a filha tivesse nascido surda, possivelmente imaginando que isso pudesse evitar o ‘voo’ de Paula para o mundo, tema da última canção do filme.

Enfim, é importante ressaltar também que o processo de individuação, de acordo com Jung, nada tem de individualismo; pelo contrário, é um processo que estimula o indivíduo a desenvolver sua singularidade e autenticidade, enriquecendo a maneira de se relacionar com o mundo, empreendendo uma convivência mais ampla e criativa. A individuação consiste em aproximar o mundo do indivíduo e não excluí-lo do mesmo.

Nas palavras de Jung: “A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É portanto um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual. (…) Uma vez que o indivíduo não é um ser único mas pressupõe também um relacionamento coletivo para sua existência, também o processo de individuação não leva ao isolamento, mas a um relacionamento coletivo mais intenso e mais abrangente”. JUNG, C.G. 2009

A escolha de Paula pelo canto está atrelada, no filme, a passar a viver numa cidade ‘grande’ como Paris. Esta foi uma maneira do roteiro do filme retratar, corretamente, a individuação não como um isolamento mas, sim, como uma ‘ampliação’ no modo da protagonista do filme se relacionar com o coletivo, como exposto anteriormente.

Referências

DALCIN, Gladis Psicologia da educação de surdos. Universidade Federal de Santa Catarina.  Curso de licenciatura em letras- libras na modalidade à distância. Florianópolis, 2009

JUNG, C. G. A Prática da Psicoterapia. OC XVI/1. Petrópolis: Vozes, 1987.

JUNG, C. G. Tipos psicológicos. OC VI Petrópolis: Vozes, 2009.

5 COMENTÁRIOS

  1. Obrigada pelo texto. Gostaria apenas de salientar que linguagem é diferente de língua. No Brasil, os surdos se comunicam pela Língua Brasileira de Sinais (LiBRAS). Nos EUA, é a American Sign Language (ASL). Abraço

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